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Especialistas criticam ênfase em internação psiquiátrica como solução para saúde mental de jovens e adolescentes
A saúde mental de crianças e adolescentes e a internação psiquiátrica foram discutidas na tarde de ontem, dia 28, durante a segunda rodada de debate em comemoração aos 30 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), promovida pelo Ministério Público do Estado da Bahia. O tema foi abordado pela coordenadora da área de Saúde do Ministério Público do Estado de Goiás, promotora de Justiça Karina D’Abruzzo e pela terapeuta ocupacional Marcella Spath, especialista em Saúde Mental com ênfase na Atenção Básica e Saúde Mental e uso de substâncias psicoativas. O debate foi mediado pelo promotor de Justiça, do MP baiano, Carlos Martheo, que atua na área de saúde da infância e juventude, e apresentado pela coordenadora do Centro de Apoio Operacional da Criança e do Adolescente (Caoca), Márcia Rabelo Sandes. O evento foi direcionado a promotores de Justiça, servidores e profissionais de atendimento psicossocial.
As palestrantes destacaram a importância de dar continuidade à política de fortalecimento do modelo psicossocial, resultante de um movimento histórico da luta antimanicomial. Elas chamaram atenção para recentes normas federais que têm estimulado a institucionalização do tratamento de crianças e adolescentes com problemas mentais decorrentes da dependência de drogas, com um excesso de incentivo às comunidades terapêuticas, para internamento desses jovens. Por outro lado, haveria uma falta de políticas públicas voltadas para o fortalecimento da Rede de Assistência Psicossocial (Raps).
Elas lembraram que a nova Política Nacional sobre Drogas (Pnad), de 2019, adotou praticamente a abstinência como a única estratégia de tratamento. Para as palestrantes, é um equívoco apostar na existência de soluções fáceis, fórmulas prontas que, em um passe de mágica, resolveriam a questão complexa e ampla do tratamento da saúde mental. As duas alertaram sobre a necessidade de os operadores do Direito e os profissionais da área de saúde e assistência social não caírem na armadilha de medidas imediatistas, que seriam falsamente a solução do problema, como a adesão imediata à internação psiquiátrica parece se apresentar.
“Nós temos que tratar um adolescente em seu território, em sua comunidade, um direito dele, que na prática muitas vezes é violado. A primeira coisa que vemos é ele sendo tirado do seu ambiente de convívio, para institucionalizar o tratamento”, afirmou Karina D’Abruzzo. Em um panorama do arcabouço normativo, a promotora de Justiça mostrou que a lei 10.216, de 2001, consolidou o aparato-político legal do modelo psicossocial e superou o ciclo histórico do modelo hospitalocêntrico. Segundo D’Abruzzo, a lei traz a internação psiquiátrica como uma medida excepcional, como última alternativa quando demonstrado que os recursos extra-hospitalares estão esgotados. Ela explicou ainda que há uma ordem dos tipos de internação a ser priorizada, na qual primeiro vem a internação voluntária, em segundo a involuntária e, por último, a compulsória, devendo todas serem comunicadas ao MP e à Defensoria Pública, como também a respectiva alta. Para Karina D’Abruzzo, a política pública de priorização da internação nas comunidades terapêuticas coloca em risco o que preconiza o ECA.
A terapeuta ocupacional Marcella Spath explicitou a mesma preocupação, explicou os diversos tipos de instituições previstos na Raps e ressaltou o papel das unidades de acolhimento do Sistema Único de Assistência Social (Suas) e dos órgãos da Rede, que integra o Sistema Único de Saúde (SUS), no atendimento às crianças e adolescentes envolvidos com drogas. “Tenho muita preocupação de termos um retrocesso, com a volta ao modelo asilar psiquiátrico como prioridade, com excesso de medicamentação. Cenário que não gostaria de viver novamente”, disse.
A especialista, que coordena a unidade assistencial Casa da Ladeira, em Salvador, destacou a importância do tratamento de redução de danos, no qual é considerado o contexto psicossocial do jovem, fazendo-o entender os motivos de sua relação com as drogas e como ele pode se fortalecer para estabelecer outra relação que, se não for a da abstenção, seja de modo que não traga consequências nefastas à sua vida. Spath ponderou que o ECA representou uma grande evolução, mas que o Estatuto considera uma situação ideal na maioria das vezes inexistente, na qual a criança não usa drogas e tem na família seu porto seguro. “Temos que enxergar a realidade, temos jovens já de oito anos fazendo uso de drogas, envolvida com tráfico, que não podem voltar para o seu lar, porque sofrem ameaça. Não temos esse jovem ideal do ECA. Temos que entender o contexto dele. Isso que fazemos na nossa unidade”, pontuou.
Fotos: Humberto Filho / Cecom-Imprensa